terça-feira, 10 de abril de 2012

Como assistir “A Árvore da Vida” de Terrence Malick


“Árvore da Vida” (The Tree of Life, 2011) não é uma unanimidade. Em Cannes foi criticado por metade da plateia e aplaudido pela outra metade. Levou a Palme D’Or em Cannes (2011) e não levou nada no Oscar (2012), a despeito das indicações. Foi assistido quatro, cinco, seis vezes pelos fãs, e abandonado na metade ou antes por quase a metade do publico (ao menos na sala de cinema aonde eu estava). Pelo que ouvi, quase sempre no mesmo ponto (a parte do “dinossauro”).
Pessoalmente, considero este filme como uma das grandes obras-primas da história do cinema, e como uma das maiores peças de arte religiosa desde que a sétima arte foi inventada. E muita gente diria amém, seja pela sua qualidade técnica e artística, seja por sua profundidade espiritual.
Que tipo de filme poderia levar cristãos e não cristãos a “cuspir” sobre ele e ao mesmo tempo em que um ateu professo como o apresentador da Globo Zeca Camargo chega a reconhecer publicamente que seu ateísmo foi abalado pela película? (Veja o seu artigo, “O Cômico e o Cósmico”).
PORQUE MUITA GENTE NÃO ENTENDEU MALICK
Com a licença dos leitores, vou agora ferir nervos sensíveis: exceto, talvez, por uma estreita faixa da assistência que não gostou do filme por razões genuinamente técnicas ou ideológicas, suspeito que a maior parte dos cristãos e não cristãos que viram e não gostaram não souberam ver o filme, devido aos longos anos de condicionamento televisivo e hollywoodiano.
Ou melhor: não sabemos ver cinema como arte. Uma das observações mais duras do cineasta russoAndrei Tarkovski sobre o cinema é exatamente essa: que o cinema deixou de ser uma arte relacionada à imagem e à imagem no tempo e se tornou teatro filmado.
“… os filmes de Lumière foram os primeiros a conter a semente de um novo princípio estético. Logo a seguir, porém, o cinema distanciou-se da arte e empenhou-se em seguir o caminho mais seguro dos interesses medíocres e lucrativos. Nas duas décadas seguintes, filmou-se praticamente toda a literatura mundial, além de um grande número de obras teatrais. O cinema foi explorado com o objetivo direto e sedutor de registrar o desempenho teatral; tomou o caminho errado…”
Andrei Tarkovski, Esculpir o Tempo, Martins Fontes, p. 71.
Não é preciso ser purista nem gostar dos filmes de Tarkovski (o que, na verdade, é difícil) para reconhecer que há algo verdadeiro aí. Se o cinema for apenas teatro filmado, não é uma forma de arte distinta. Se for apenas tecnologia de efeitos especiais, o cinema e o game poderiam ser a mesma coisa.
Não há pecado em assistir a um filme por pura diversão – é para isso que serve o filme “pipoca” – e ninguém tem a obrigação de gostar e de aprender a gozar de cada forma de arte criada pelo homem. Mas não é inteligente utilizar o entretenimento como critério final de julgamento da arte.
Mais do que isso, talvez possamos até dizer que se Blaise Pascal estiver certo, e o entretenimento for uma forma do homem evitar a consciência de sua ruína espiritual e de sua necessidade de Deus, é subecristão considerar o poder de entretenimento um critério final para qualquer coisa, e muito menos para a arte.
A questão é que o último filme de Malick não é, definitivamente, uma peça de entretenimento. Vou aqui tentar interpretá-la como uma obra de arte no sentido Tarkovskiano, que gira em torno do princípio estético próprio do cinema, da criação de “esculturas” temporais; e que evita perder-se no teatro, ou no recurso tecnológico. Não se pode assistirThe Tree of Life como se assiste “O Homem Aranha”. Não é que não se possa assistir “O Homem Aranha”, mas que não se pode assistir aos dois filmes com o mesmo espírito.

Assistir “A Árvore da Vida” é mais como ir a um museu de arte, para ter a chance de ver umRembrandt: prende-se a respiração e gastam se pensamentos e emoções na busca de uma experiência estética intencional. Não se trata de uma “distração”, de buscar algo para “rir um pouco”, nem do estímulo de uma história aventuresca. Se alguém nunca foi a um museu de arte e jamais quis ir a um; se a única música que ele escuta é a do rádio (para não se sentir sozinho em casa) ou aquela música que evoca as sensações da última balada, é evidente que tal pessoa não está preparada para avaliar o cinema de Malick.



Repito: se você sabe ver um filme como arte e não gostou de Tree of Life, isso não se aplica a você. É perfeitamente adequado desaprovar de forma inteligente uma obra de arte. Mas infelizmente isso não se aplica à maioria do público brasileiro; de modo que uma leve e saudável suspeita de si mesmo pode ajudar bastante ao cinéfilo.
Mas há algo mais em jogo. Segundo minha percepção, o filme de Malick não é apenas uma obra de arte, mas uma obra de arte religiosa. E isso acrescenta uma segunda complexidade: é que assistir “A Árvore da Vida” é um pouco como ir à Igreja; ou, para aqueles com uma espiritualidade mais ampla, ter uma visão espiritual de uma paisagem natural grandiosa. De fato “Terry” chega à ousadia de transformar a sala de cinema em uma igreja ao botar o público para ouvir o sermão de um padre, dentro de uma capela, baseado no livro de Jó; e um sermão de arrancar o couro (veja o texto AQUI). Quem, hoje, teria a coragem, a capacidade, e a autoridade para fazer uma coisa dessas? Uns poucos… e Terrence Malick.
E daí a dúvida: a igreja estava em Cannes? Ou será que Cannes foi à igreja? Uma coisa é certa: se você não sentiu essa fusão religiosa ao ver o filme, então você ainda não viu o filme. E essa é a outra razão, creio, porque muita gente não entendeu Malick: é que lhes faltavam categorias espirituais e até mesmo teológicas para assistir ao filme. Posso citar uma: A Árvore da Vida é inacessível sem uma categoria teológica básica, um teosofema que é enunciado explicitamente por Malick no princípio do filme como sua subestrutura fundamental: a distinção de Natureza e Graça, que tem uma longa história no ocidente desde suas raízes bíblicas, passando por Agostinho, Tomás de Aquino, Calvino, Pascal, até o pensamento cristão do século XX (Tillich, Barth, Dooyeweerd, de Lubac, entre outros).
A completa ignorância sobre a profundidade e a importância dessas categorias bloquearam a compreensão do filme para uma miríade de críticos de cinema – alguns até experientes – que tentaram reduzi-lo a uma leitura psicológica edipiana, ou a uma crítica da sociedade americana dos anos 50, ou a um experimento surrealista, ou uma imitação de Kubrick em “2001″ (absurdo dos absurdos), ou a mais ridícula de todas: uma coleção sem propósito de imagens e sons na esteira dos documentários da NatGeo. E quando esse secularismo raso se misturava com a falta de educação artística, os resultados só poderiam ser catastróficos. Ao que parece esses críticos simplesmente assumem que as categorias teológicas cristãs (que, a propósito, foram essenciais para a própria constituição das categorias filosóficas modernas) “não podem” ser essenciais para compreender uma obra-prima contemporânea. Não podem porque isso seria anacrônico, porque seria kitsch, porque “ninguém usa isso mais”, porque isso não é coisa de gente “inteligente”, porque seria “propaganda religiosa”… E assim eles prosseguem, arrancando os próprios olhos bem diante da evidência.

De novo, preciso observar que alguns expectadores e críticos realmente entenderam a carga religiosa e existencial do filme, e não gostaram exatamente disso. Ao que se sabe essa foi a motivação de parte das vaias em Cannes; mas não deveríamos esperar algo diferente de um filme que pretende atingir o expectador em sua raiz espiritual. Isso dói tanto quanto tocar na raiz de um dente.
Assim, sugiro àqueles que viram o filme e não o entenderam, ou não gostaram dele, que tentem de novo. Tentem diferente, com outra atitude. Mais do que isso: orem (ou meditem, se não forem cristãos) antes e depois de ver o filme. Não dá pra assistir A Árvore da Vida só com os olhos. Tem que ser com a alma.
Agradecimentos ao Pr. Guilherme de Carvalho - Ultimato.com.br/sites/guilhermedecarvalho

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