Li muitas críticas aclamando o filme “Precisamos
falar sobre Kevin”, da diretora escocesa Lynne Ramsey, mas não tive
oportunidade, ainda, de assisti-lo. Em compensação, fui privilegiado ao
assistir ao primeiro filme da diretora, após três curtas, chamado Ratcatcher e
lançado há treze anos, em 1999.
Não deixa de ser um lugar comum quando
um filme toma o olhar de uma criança/adolescente como o centro de sua
narrativa. Tal idéia pode ser vista de maneiras bem diferentes, por exemplo, no
belíssimo filme de Ken Loach, Kes (1969), no complexo e psicológico Fanny e
Alexander, do grande Ingmar Bergman (1983) ou mesmo no filme The Kid With a
Bike (2012), dos grandes diretores (e irmãos) franceses Jean-Pierre e Luc
Dardenne. Porém, o cinema britânico costuma destacar-se pela sensibilidade
acerca dessa questão, principalmente na relação da infância com as perdas,
crueldade, solidão e famílias desajustadas.
O filme, ambientado na década de 70
nos arredores de Glasgow, tem como panorama político a greve dos lixeiros
dentro do um crescimento populacional desenfreado da população proletária e se propõe a mostrar sua pobreza e fraquezas enquanto 'Sistema'. Nesse background, somos
colocados de maneira perturbadora dentro da realidade escocesa sob a visão do
adolescente James. O início do filme é arrebatador: nos primeiros minutos o
protagonista vê, inerte, o afogamento e morte de um colega vizinho, Ryan Quinn. Somos
apresentados a um protagonista já dominado pela culpa, vergonha e medo que
este acidente lhe causa. Levemente melancólico, o garoto dorme de exaustão e
sonha com lixo e inocência, vive uma vida, mas jamais se esquece do menino
afogado. Somos apresentados a sua família e aos seus amigos e a um playground
tomado por sacos de lixo, devido à greve dos lixeiros, promovendo assim um
ambiente degradado, mas meio mágico, com a companhia quase permanente dos
ratos. Logo, tudo ao seu redor parece ter o mesmo destino, seja o pai que
perambula por vários trabalhos, ou a amiga de vida fácil, que é seu único
consolo. Com meia hora de filme, a impressão mais forte
é de uma culpa que não me fez sentir culpado, ou seja, é tocante mas deixa-me
com um papel de espectador, não apelando aos meus sentimentos pessoais. O filme
constitui-se de uma estética crua combinada a um ambiente conturbado, de extremas
reviravoltas, onde a esperança se torna um dos únicos artifícios para se
continuar vivendo.
Impressiona também forma como o
filme é narrado e desenvolvido, já que a diretora Lynne Ramsey não se preocupa
com fato desenrolar a história, prolongada até descobrirmos que foi uma escolha
consciente. Esteticamente, mesmo com a ousadia de recriar o imaginário do
garoto protagonista, o principal fator é uma grande quietude que perpassa o
filme, quase um silêncio. É um retrato cruel, minucioso e real de uma juventude
perdida e longe dos olhos do mundo. A fotografia é simplesmente impecável e,
atenuando alguns grandes momentos de silêncio, a trilha sonora de músicas
famosas da década de 70, como por exemplo, “Lollipop”, tornam um roteiro perturbador
em uma história de esperança, de redenção.
A escolha do ator infantil que
interpreta o protagonista demonstra o caráter introspectivo, silencioso,
realista e reflexivo desejado dentro da ótica juvenil, entre a surpresa e o
medo natural das novas experiências que a vida proporciona. Audacioso e ousado,
o filme fala da iniciação sexual - com cenas de nu juvenil que jamais passariam
nos filmes hollywoodianos – de maneira muito honesta e até poética; consequentemente, essa ousadia não deixa o espectador curioso ou excitado, antes,
insere uma aura de sensibilidade e afeto a um garoto predominantemente triste e
solitário. Demonstra também a crueldade juvenil, da dor da perda e do
alcoolismo do pai, de maneira não estereotipada, mas brutal e poética.
O filme transcorre como um retrato de
época e de geração dos mais sensíveis e sutis vistos em muito tempo, até seu
fim. É um filme seguro e sensível, e ao mesmo tempo perturbador, sobre as experiências
de um menino pobre, enquanto ele luta para conciliar seus sonhos e sua culpa
com a abjeção que o rodeia. Mesmo dentro de um tema complexo, difícil e
indigesto, o simples roteiro se sobressai maravilhosamente com a batuta
artística impecável da diretora Lynne Ramsey. É sutil, perplexo, pungente, com
cenas que atenuam a dureza geral, até que ela por fim cede, restando apenas uma
bonita dor. A metáfora final, quando cada membro da família carregando um pouco
da construção final para a chegada ao paraíso, emociona e traduz a essência do
filme.
É um dos filmes mais profundos e belos
que tive a experiência e o prazer de assistir.
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