quarta-feira, 15 de junho de 2011

Leite e Insetos

E era somente ele. Ele e a pobre da gata. Um cego. Um velho. Uma pobre. Uma gata. Um velho cego e uma pobre gata. Apenas os dois e ninguém mais. Um pequeno apartamento no subúrbio da grande cidade. Andar térreo, tão velho quanto o próprio morador. E a gata? Sim, pobre gata. Magra, frágil, desnutrida. Tão maltratado o pequeno animal; não por culpa do velho, é certo que não, ele até que gostava dela, mas em suas condições, tão precárias, não havia muitas chances para a gata. Tinha apenas uma vantagem, ou melhor, duas: miava, e de vez em quando se esfregava nas pernas tortas e cansadas de seu velho dono; isso lhe valia sempre alguma recompensa, ainda que bastante reduzida. O ruído de seu ronronar ajudava-o a livrar-se da solidão completa. Estava condenado a viver em um mundo de trevas. Sim, o mundo realmente jaz em trevas. Era o que diziam. De tempos em tempos aparecia alguém batendo na porta. Parentes? Amigos? Não. Apenas o zelador do prédio. Apenas cartas. Apenas contas. Contas essas que ele sequer podia ler. E os amigos? Não os tinha. E os parentes? Desconheciam. E os filhos? Não se lembravam. E assim levava a vida: a gata, ele, e só. A sombra amarga da solidão acompanhava-o em sua jornada escura que caminhava para o mesmo destino, comum à humanidade, o mal das gentes. Nada lhe restara, exceto a gata. Seu bem mais valioso. Os filhos perderam-se no mundo, a esposa, que doce lembrança, ceifada ainda jovem, e hoje aparecia apenas em lembranças distantes, de tempos felizes. Onde estaria sua amada? A idade avançava, as doenças, a deterioração natural de qualquer ser humano. Uma sombra então cobrira sua vida. E então, tudo o que lhe restara foi nada, exceto pela gata, a eterna companheira. Pobre animal. Vivia quase sem comida, alguns poucos insetos, talvez pequenos ratinhos em suas caminhadas noturnas. Um pouco de leite servido todas às tardes pelo dono, e nada mais. Não era fácil pertencer a um pobre velho cego e perdido em sua vida. Melhor seria viver nas ruas, em companhia de outros iguais. Correndo riscos, é certo que sim, mas também recebendo os frutos de tais empreitadas felinas. Era isso. E isso era tudo. Estava decidido, não havia mais o que pensar. A decisão fora tomada. A noite era escura, não que isso importasse. Era sempre noite para o pobre velho, exceto pela ausência constante da lua e das estrelas que costumavam brilhar a noite de sua juventude. O animal preparava-se lentamente, tomando todas as precauções. O fim era inevitável. Dirigiu-se até sua vasilha, lambeu as últimas gotas de leite que ainda restavam, miou algumas vezes. Não obteve qualquer resposta que a fizesse mudar de idéia. Aproximou-se da cama, roçou pela última vez seu rabo peludo nos braços enrugados e enfraquecidos do triste homem. Agradecia, de certa forma, por todos aqueles anos de cuidados, de carinho. Mas era hora de partir, uma questão de sobrevivência, não havia nada a se fazer a respeito. Subiu na beirada da janela, sempre aberta para que ela fizesse seus costumeiros passeios, passou pelas grades com a natural agilidade e sumiu na escuridão, para nunca mais voltar. O pobre velho, só.

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