segunda-feira, 11 de julho de 2011

Amarelar

Apenas mais uma tarde como tantas outras; nada de diferente, pois nada havia mudado. Pensava ter visto algo, diferente, mas estava certamente enganado. Sua vida passava-se naquele retrato, cujas únicas mudanças eram o esmaecimento das cores e o envelhecimento do papel com o contar dos anos. Todas as tardes passavam como se sequer tivessem chegado a acontecer; simplesmente porque os acúmulos da vida para ele eram unicamente a poeira que cismava em ajuntar-se sobre sua cabeça. Não se preocupava em limpar-se dela, quem sabe pudesse apenas nada fazer, e assim esperar que algo enfim acontecesse. Mas não era esta a ordem natural de sua vida, e muito menos da dos outros, de forma que a poeira continuava a ajuntar-se sobre sua cabeça, as cores continuavam a esmaecer, e o papel continuava a amarelar.

O sol sempre se punha do mesmo lado, apontando seus últimos raios quentes e luminosos diretamente para sua janela. Aquela luz tremendamente forte que nos dias de verão teimava em invadir cada espaço de seu pequeno quarto no décimo primeiro andar do prédio onde morava bem de frente para outro prédio: a única vista que tinha. Sonhava em algum dia morar naquele outro ninho, com bela vista para a praia, mas por ora tinha que se contentar com a janela do vizinho, quase sempre fechada.

Ficava pensando, sentado em sua cama, sobre as coisas que poderiam ter sido, mas por diferentes razões que não sabia explicar, não tinham. Não lamentava, apenas pensava em como teria sido ser alguém diferente. Pensava nas escolhas e decisões que em nada mudaram sua vida. Apenas amarelavam, e amarelavam, junto daquele que timidamente se escondia no cenário urbano carioca.

Lembrava-se dos dias que não eram amarelos, quando ainda era criança, e podia escolher ser diferente, ou quem sabe igual aos outros. Pensava em sua escolha, pensava na escola, no belo sorriso maroto que sentava na carteira da frente, com seus longos cabelos caindo sobre seu livro. Talvez pudesse ter feito algo. Quem sabe uma palavra, uma frase.

Lembrava-se do dia em que lhe chamaram pra nadar. Como havia ficado feliz, ainda que não soubesse nadar. Ao menos poderia estar ao lado deles, afinal nunca o haviam convidado. Que grande honra. Talvez pudesse ter feito as coisas diferentes naquele dia, mas, por Deus, era apenas uma criança! Que poderia esperar-se de uma criança? Que poderia esperar-se agora que já não mais era? Talvez apenas amarelar, era isso. Dentes que amarelavam a cada gole de café quente que tomava assim que chegava, ainda a tempo de observar o pôr-do-sol de sua janela, ou pelo menos aquilo que ele conseguia ver, antes do sol colocar-se atrás da massa cinza que lhe tapava a visão. Nunca pudera ver tudo, tinha que se contentar apenas com aquela visão parcial e limitada do amarelar. Assim como a vida.

Sentado em sua cama lembrava-se da primeira vez que ouvira os ruídos de seu colchão. Ah, como gostava daquela guria. Era uma pena que tivesse ido embora, mas a vida tem dessas coisas, diziam eles. Poucos tentaram consolá-lo, enquanto os outros, bem, não havia outros. Apenas alguns. Alguns eram todos. Não sabia se poderia agradecer ou amaldiçoar, mas o tempo passava, e a foto daquela bela jovem também amarelava, como todo o resto. Ainda devia estar guardada em algum lugar, talvez numa caixa de papelão, escondida da vista, perdida para que talvez se perdesse também de sua memória.

Mas memória, menina vadia e traiçoeira que nos engana sem pudores. Pudera esquecer-se de todos aqueles dias que ainda brilhavam quentes em sua mente. Aqueles dias longe do amarelar da vida. Dias que não precisavam de escolhas, dias que apenas precisavam ser vividos, com a euforia dos jovens que ainda não enxergam o sol se pondo.

Mais um café. Se ao menos gostasse de café. Ainda não sabia porque tomava café, era uma terrível compulsão, um forte desejo mental, estava adestrado, embora não gostasse. A cor negra da bebida quente lhe lembrava da morena que jazia perdida em sua memória. Havia descoberto a razão. Acreditava que as coisas deveriam ter algum sentido. Apenas ainda não havia encontrado o seu. Não mais procurava, estava cansado, de nada fazer.

Sentou-se na beirada da cama tentando ver os últimos raios amarelos que já iam saindo de seu campo de visão, escondendo-se, fugindo de suas mãos e esfriando-lhe o corpo. Não queria perder os últimos momentos, que algumas vezes podiam ser os mais belos. Mas não sempre.

Observava atentamente, tentando não lembrar de nada, tentando apenas pensar na quente cor amarela que invadia seu quarto pelos últimos minutos. Alguns últimos pensamentos ainda lhe vieram à mente antes que pudesse desligar-se completamente. Viu o mundo escurecendo, seu pequeno quarto tornar-se preto, o amarelo que pela última vez brilhava ali. Deitou-se em sua cama, viu seu pequeno mundo desaparecendo enquanto fechava os olhos, e dormiu.

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